Sobre a felicidade presente e a felicidade futura

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Published

February 26, 2024

A felicidade presente é sempre real, enquanto que a felicidade futura é uma aposta arriscada que poucas vezes cumpre as expectativas. Imagem tirada do excelente Extra Fabulous Comics.

“Cândido, ou O Otimismo”, é um dos livros mais famosos da literatura universal. Neste conto filosófico, Voltaire narra com sua ironia peculiar as aventuras do ingênuo Cândido, que nasceu num palácio e se apaixonou pela bela Cunegundes. Lá também vivia o sábio Pangloss, que afirmava “estar demonstrado” que esse é o melhor dos mundos possíveis (ridicularizando Leibniz, o mesmo Leibniz do cálculo diferencial). Quando descobrem o romance de Cândido e Cunegundes, este é expulso do palácio e passa passa por várias aventuras e desgraças tentando reencontrar sua amada: é recrutado por búlgaros, sobrevive ao terremoto de Lisboa de 1755, vê Pangloss ser enforcado pela inquisição, foge pra América onde sem querer enfia uma espada no irmão de Cunegundes, é roubado, levado como escravo, mas por fim consegue reencontrar sua amada e casa-se com ela em Constantinopla onde vivem na pobreza.

A última cena desse conto poderia ser um “e viveram felizes para sempre”, mas não é. Nela vemos um Cândido abatido, como que “morto por dentro”; Pangloss (que ainda estava vivo e vivendo com eles!) lhe diz:

— Todos os acontecimentos — dizia às vezes Pangloss a Cândido — estão devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesses sido expulso de um lindo castelo, a pontapés no traseiro, por amor da senhorita Cunegundes, se a Inquisição não te houvesse apanhado, se não tivesses percorrido a América a pé, se não tivesses mergulhado a espada no barão, se não tivesses perdido todos os teus carneiros da boa terra do Eldorado, não estarias aqui agora comendo doce de cidra e pistache.

Ao que Cândido lhe responde, finalizando a história:

— Tudo isso está muito bem dito — respondeu Cândido, — mas devemos cultivar nosso jardim.

Imagino o pobre Cândido trabalhando à exaustão em seu jardim como um meio de esquecer a vida e apenas sobreviver, após tantos anos imaginando o quanto seria feliz ao reencontrar sua amada, que já não estava bela como antes e nem era tão amável quanto ele imaginava. Em sua última frase, Cândido mostra que as “vãs filosofias” não lhe interessam, e que é preciso trabalhar para viver. Como o Sísifo de Camus, é preciso imaginar Cândido feliz enquanto carregava sua pedra, isto é, enquanto fazia de tudo para reencontrar Cunegundes. Mas depois do encontro, o que lhe restou? A felicidade imaginada lhe pregou uma peça; o pêndulo de Schopenhauer é implacável.

Voltaire deixa Cândido sozinho em seu jardim, com o peso da própria existência pairando em sua mente, num “zoom out” cruel. Não sabemos seu fim, nem o que se passa em sua cabeça: o retrato do Otimismo que precisou confrontar a realidade de um mundo “feito para nos dar raiva”, como dizia o cínico Martinho.

Capa cabulosa da editora 34.